sexta-feira, 24 de abril de 2020

"Nunca havia visto tanta gente morrendo em um plantão de 12 horas", diz cirurgião de Manaus

Foto: Arquivo pessoal/Renan Ziegler
Renan Ziegler atua nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de alguns dos hospitais mais afetados pelo coronavírus no Amazonas

Aos 35 anos, o cirurgião geral Renan Ziegler enfrenta o maior desafio de sua carreira. Ele atua em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) em Manaus, em algumas das instituições mais afetadas pelo coronavírus na região — o Hospital e Pronto-Socorro João Lúcio, que recebeu um contêiner frigorífico na última sexta-feira (17) para dar conta dos mortos, e o Delphina Aziz, unidade de referência para a doença no Amazonas.


Entre 16 de março e 16 de abril, a quantidade de casos confirmados da doença passou de um para 1,7 mil na região, sendo que, nesta quinta-feira (23), segundo boletim do Ministério da Saúde, já eram 2,8 mil infectados e 234 mortos.

O primeiro óbito foi registrado em 24 de março. Quatro semanas depois, 193 pessoas já haviam perdido a vida para a covid-19. A título de comparação, no Rio Grande do Sul, até a manhã desta sexta-feira (24), são cerca de mil enfermos e 31 perdas.

Prestes a completar cinco anos de formado, Ziegler conta que "nunca havia vivido a situação de ver tanta gente morrendo seguidamente em um plantão de 12h" - em um desses turnos, foram 14 óbitos, segundo ele. Ele próprio se tornou uma vítima da covid-19. Ficou em casa por 14 dias, sentiu fraqueza e náuseas, mas conseguiu se recuperar e retornar ao trabalho.

Na avaliação dele, a lição a ser tirada da pandemia e do colapso que provoca no Amazonas é clara: saúde, diz o médico, "custa caro, custa tempo, custa energia, não dá pra brincar de gestão". O resultado disso é visível,, "quando a estatística vira nomes".

A seguir, leia a entrevista concedida via WhatsApp, na noite de quinta-feira (23).

Qual é a situação hoje no Amazonas e, em particular, em Manaus?

A situação é a pior possível, em especial nas urgências e emergências, que são a porta de entrada dos pacientes. Não raras vezes temos que escolher quem vamos ajudar, por falta de material.

O senhor atua na linha de frente, em UTI, urgência e emergência. Como está o trabalho?

Atuo em Terapia Intensiva Adulto em serviço público e privado e em salas de emergência no sistema público. UTIs sempre lotadas, rotatividade alta, mal damos uma alta, ou mal alguém falece, logo admitimos novos doentes.

Vocês se vêem obrigados a ter de escolher quem vai receber ventilação? Faltam equipamentos para toda a demanda, não?

Sim, é bem assim. Mas essa é uma realidade nos setores do front, ou seja, nas portas de entrada como as salas de emergência ou “salas rosas", que é onde recebem o primeiro atendimento os pacientes com síndrome gripais e/ou respiratórias e portanto, suspeitos para covid.

Em muitos casos, é uma escolha de vida ou morte. Como fica a cabeça diante de tudo isso?

É preciso ponderar quem se beneficiará mais ou menos de ser intubado. Priorizam-se os mais graves e com melhor chance de sobrevida. Mas não raras vezes vivemos a situação de mais de uma pessoa precisar receber ventilação mecânica e não termos para os dois. Aí são escolhas muito mais difíceis. Porque não temos só covid, continuam chegando diabéticos descompensados, insuficiências cardíacas, infartos, que podem precisar de ventilador, mas os equipamentos estão sendo usados nos pacientes com covid. Na UTI, os leitos e ventiladores são por paciente, então, é diferente dos setores de porta de entrada, mas eventualmente temos de priorizar quem receberá determinados dispositivos, como por exemplo o kit de pressão arterial invasiva.

Deve ser difícil. Vocês recebem algum apoio psicológico?

É difícil, às vezes o corpo cansa, em outras, o espírito cansa mais. Aí é a hora de tirar uma folga de pelo menos seis horas, 12 horas. Tento sempre dormir em casa. Tento dormir a maior parte da semana em casa, e tento não trabalhar muito no final de semana.

Daqui, é chocante ver a abertura de valas coletivas, as câmaras frigoríficas, o desespero de famílias e a sensação de impotência dos médicos. Em sua carreira, já havia testemunhado algo assim?

Bem, eu trabalho no SUS e o cenário de guerra é uma constante, mas nunca havia vivido a situação de ver tanta gente morrendo seguidamente em um plantão de 12 horas.

O que, na sua avaliação, levou a isso?

Sem dúvida, nosso sistema nunca esteve preparado para uma pandemia dessas. A falta de leitos e insumos já era realidade crônica, sempre houve a necessidade de readequação e aumento de leitos de UTIs. Poderíamos ter feito isso ao longo dos anos, mas aí veio essa pandemia trazer à tona o que sempre existiu, mas agora de uma maneira muito mais trágica.

Como foi a experiência pessoal de passar pela covid-19?

Fui infectado, mas já estou curado e de volta ao trabalho. Fiquei em casa por 14 dias, e o período crítico foi entre o quinto e o décimo dia. Sentia fraqueza, náuseas. A falta de ar foi muito discreta e eventual, graças a Deus .

Muitos Estados, entre eles o Rio Grande do Sul, estão flexibilizando o distanciamento social. Qual é a sua avaliação sobre isso?

Eu acho que meias medidas dão meios resultados.

Que lição fica do caso de Manaus?

A lição principal é para os chefes de Estado, e o grito é crônico. Saúde custa caro, custa tempo, custa energia, não dá pra brincar de gestão, em nenhum setor dá, mas na Saúde o resultado das boas e má condutas é agudo, é agora e é evidente, é quando a estatística vira nomes. Mas também serve de lição para todos nós sobre o valor das coisas e das pessoas, sobre como é bom estarmos juntos e como isso não custava tão caro.

GaúchaZH

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